Calma tarde de outono a que se viu diante de um espelho repleto de rachaduras. Em cada pequenino pedaço, refletia-se sua forma distorcida de diferentes maneiras fazendo com que se perguntasse se alguma daquelas figuras seria ela. Realmente.
Naquela tarde quente, perdida como sempre em suas ilusões e pensamentos tão fantasiosos que a assustavam quando era sobressaltada pra realidade, ela viu de longe uma chance de paz.
Vinha gesticulando e falando alto, as pessoas se afastavam amedrontadas, atraía olhares curiosos, tinha a roupa em farrapos e quando chegou mais perto, os olhos mais verdes que ela já tinha visto. Lindos transbordando esperança, uma cicatriz acima do olho direito de coragem e uma respiração ofegante de desejo de viver.
Durante os dois segundos que aqueles olhos se esqueceram sobre os tímidos castanhos da moça, ela sentiu o coração parar. Um zumbido apaixonado preencheu seus ouvidos e tudo ao redor que antes era concreto se desmanchou em cores sombrias.
Quando a chuva embaçou o vidro da janela e ela viu seu reflexo distorcido torcendo as mãos, tinha uma dureza nos lábios, um gelo nos olhos e não reconheceu a mulher que a encarava.
Enquanto a chuva martelava incessantemente no telhado, enquanto lá fora um homem corria procurando abrigo, ela desejava uma calçada suja onde pudesse esbarrar em milhares de olhos verdes, desejava ver um sorriso zombeteiro em cada esquina que virasse, e a paixão avassaladora que sentira uma vez, dominar novamente seu coração.
Fazia café, recolhia copos, pratos na pia, documentos no chão, pilhas de papel na mesa. Barulho de saltos, sandálias jogadas no canto, romance aberto em cima do sofá. O cachorro mastigava a cortina, os canários dormiam recolhidos debaixo de suas próprias asas e a moça, que se tivesse nome seria Ana, continuava a olhar a rua pela janela já não embaçada. As gotas escorriam transformando o vidro em fragmentos, em cada uma, uma mulher diferente se mostrava. Não havia distorção, todas eram ela, mesmo quando nenhuma realmente Ana mostrava.
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