quarta-feira, janeiro 1

Conto do avô

O corredor estava cheio de pernas, gritos e do barulho irritante dos tênis de borracha contra os azulejos bem encerados. A algazarra de meus primos mais novos era tão infernal quanto a de qualquer grupo de meninos de sete e nove anos de idade pode ser, e foi interrompida a empurrões quando a mais gorda de minhas tias com cabelo recém tingidos de loiro amarelo em busca de jovialidade subiu as escadas gritando mais alto que a molecada para irem pro quintal porque o avô precisava de sossego.

O avô, que também era o meu, gritava do quarto sem ser ouvido, o esforço da garganta envelhecida não conseguindo alcançar as notas graves de um tempo passado. Observei da porta enquanto ele resmungava com os punhos semirrígidos para as paredes que o ignoravam tão solenemente quanto minha família. Ele logo se cansou, mas não antes de focar os olhos fatigados por um corolário de doenças em mim.

“Quem é que está aí”?

A desconfiança na voz que sibilava ao buscar por força era maior que a curiosidade. Esperei pacientemente que ele pegasse os óculos no criado ao lado da cama e os colocasse de melhor maneira sobre o nariz afilado antes de saciar os pensamentos do velho. Estreitava os olhos pequenos e lambia os lábios finos que ficavam lubrificados de saliva, mas ainda assim pareceu não me reconhecer.

“Sou eu, vô, João Carlos, sua benção.”

Meu nome não pareceu satisfazer sua curiosidade, continuava a me olhar de lado, estreitando a vista e enfiando os dedos por debaixo das lentes grossas para coçar os olhos miúdos.

“João Carlos é? João Carlos... De Mária Eulália ou de Emília?”

“Emília, vovô.”

“Hum.” Os braços finos e manchados fizeram força para erguer o corpo frágil e quando fiz menção de me aproximar para ajuda-lo, recusou com um aceno. “Sabia que era o de Emília, o outro foi morar a muitos anos em São Paulo e Lalinha ainda espera que volte. É uma tola, cheia de esperanças que só as mães têm, depois que a gente coloca filho no mundo não consegue mais controlar a cabeça deles, sabia? Aposto que não sabia. Chegue mais João Carlos, não consigo te ver daí.”

Quando eu era pequeno, o quarto do meu avô era um local sagrado em que ninguém entrava. Ficava da porta com dois primos apostando quem se encorajava a dar passos para dentro daquele grande santuário. Uma vez meu primo Rodrigo chegou até a cama e passou os dedos de leve por sobre a colcha e dali em diante se tornara nosso herói.

Havia imagens de santos por todos os lados e nossas senhoras para todos os gostos e desejos que olhavam sempre com um semblante mais triste do que terno. Uma vez perguntei minha vó Maria porque a mãe de Jesus parecia tão triste e ela disse que a culpa era toda nossa e que devíamos pagar por existir. Ela possuía a mesma expressão triste.

O avô de minhas lembranças era alto e sisudo, de constituição forte apesar de magro, sempre com os cabelos negros e fartos penteados disciplinadamente de lado e barba feita. Era um homem bonito e elegante e eu sempre estufava um pouco o peitoral quando alguma de minhas tias falava que me parecia cada vez mais com ele. Ver o herói de minha infância tão mirrado e fraco na cama imensa daquele quarto velado por Deus embrulhou meu estômago e o medo do destino que me espera ser semelhante àquele correu queimando por minhas veias.

Postei-me de modo que a luz fraca que lutava para entrar por uma fresta da cortina incidisse sobre mim e sorri. Tentei parecer mais alto e mais forte. Tentei naqueles poucos minutos ser mais homem do que fui por toda minha vida.

“Cristo. É como ver um fantasma, não é mesmo, João Carlos?”

A expressão dele enquanto me examinava era carrancuda, mas o sorriso que aparecia no canto da boca murcha talvez denunciasse que estava feliz com o que via, já o meu havia congelado na boca. Para mim aquilo tudo era como ver o futuro.

“Sabe, se sua avó ainda estivesse aqui ficaria louca com você. Ela gostava muito de fantasmas.”

Aproximei-me da cama e pela primeira vez ousei encostar à cama de meus avós. Ainda era bonita. De jacarandá e formas masculinas, combinava com a figura a quem pertencia. Meu avô sempre fora aventureiro e boêmio, soube disso depois de velho, mas em minha imaginação de criança era sempre um general.
“Vovó estava doente, vovô, é diferente de fantasmas.”

Ofereci um sorriso e ele me respondeu com um escarro em um lenço de seda que estava ao seu lado.
“Gostava de fantasmas isso sim. Dizia estar desesperada, e chorava com suas tias e chorava comigo e rezava na igreja como uma Madalena arrependida. Falava “oh, Geraldo, e se um dia não reconhecê-lo mais?” A miserável partiu meu coração. Então um dia a peguei de joelhos, apesar de praguejar contra a artrite, agradecendo a Jesus por esquecer de estar velha. Ela preferia os fantasmas”

Havia amargura em sua voz e também em seus olhos quando os confrontou com os meus. A figura distante e idealizada também sofria e constatar que meu avô também tinha sentimentos chocou-me mais do que a visão de seu definhamento.

Em criança andávamos juntos a cavalo, ele sempre fumando um cigarro, ia a frente abrindo as porteiras sem falar palavra. Eu e as meninas íamos ao meio, acompanhava-o com admiração entre os risinhos incontroláveis das moças e as reclamações pelo longo tempo em cima da sela. Guilherme, meu primo mais velho fechava o cortejo e quando parávamos para descansar ia ter com meu avô, com quem tinha conversas curtas de mais falar do que ouvir. Despertava inveja em todos nós.

“Não acho que seja isso, vô, era a doença falando. Vovó amava viver e ainda mais o senhor.”

Não tinha certeza se alguma vez minha avó amou meu avô de fato. A verdade é que a casa sempre cochichava que ela nunca o perdoou por tê-la deixado sozinha com cinco filhos pequenos para tentar a vida no Pará. Disse que voltaria rico,  que o ouro estava lá. Voltou trinta quilos mais magro e só com a roupa do corpo em farrapos, deu-lhe surra quando ela levantou a voz para ele e depois dormiu por dois dias. Nunca mais falaram disso.

“Tia Marília pediu que examinasse o senhor. A tosse está deixando todo mundo preocupado.”

O riso de meu avô parecia mais um chiado e o corpo todo se contorcia a cada tentativa de gargalhada.
“A tosse é? A tosse é tão companheira quanto qualquer um dessa casa, João Carlos. Falaram o mesmo do intestino e da bexiga e eu não morri. Toda vez que fica mais forte, Marília sobe as escadas correndo e entra pela porta arfando como uma porca e fazendo barulho suficiente pra ressuscitar um morto a três dias. E sua avó reclamava sempre do ganho de peso dela. Eu acho que ter uma filha gorda tem suas vantagens. Ela assusta a morte.

“Ora, avô, deixe disso! Todos só querem seu bem! Dar uma olhada mal não vai fazer! Não é só tia Marília que se preocupa.”

O velho Geraldo se recostou nos travesseiros de lençóis alvos, retirou os óculos e cruzou as mãos. Não havia graça em seus olhos e aquele pequeno momento de compatibilidade de repente pareceu tão efêmero quanto meus sonhos de crianças.

“Dê lembranças a sua mãe. Fale que logo não vou estar mais aqui então ela poderá vir pra casa. Quando sair, por favor, feche a porta Eduardo, o barulho me dói a cabeça.”

Ainda fiquei um minuto sentado na cama antes de me levantar num pulo, como se de repente lembrasse que meu ato era profano. O ressentimento dava lugar à euforia e o recado indiferente para minha mãe pesava em minha cabeça.

“É João Carlos, avô, e todos nós só queremos seu bem.”

Ele já havia virado para o outro lado.

“Que seja, você é só mais um deles.”

Então dei as costas e saí, dessa vez mais menino do que homem, como nas memórias de minha infância.



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