quinta-feira, junho 23

Diante do trono, o vazio.

Diante da impotência perante a vida conheci Deus. Não era super-homem ou super espírito e nem tinha raios nas mãos como num Zeus renascido. De seus olhos cegos me olhava cansado, de sua boca murcha saíam suspiros de desgosto.

Imagine que você crie um mundo com a intenção de ser nada menos que perfeito e imagine que jogue nesse mundo cheio de explosões e modificações, cheio de nuances e transformação aquilo que você criou para desfrutar de toda a mágica e de toda intensidade. Imagine que aquilo que você criou com fome se alimentou de um moralismo covarde e não do desejo e nunca da descoberta.

Não se admirou quando de concreto e lágrimas e rezas e súplicas todos eles se fecharam em grandes concentrações de demência esperando pela felicidade ao invés de procura-la em si mesmos.

Não se surpreendeu quando cuspiram nos rostos dos que tentaram diferente, que pisaram fora da redoma, que esqueceram os cânticos.

O normal era se ater o escuro em busca daquele que traria a luz e a espera de milênios fez a beleza do espetáculo perder o viço, o brilho  e a esperança de ousadia.

Ao julgar e condenar os outros, se esqueceram de si mesmos e todos os ditos pecados eram perdoados por um punhado de dinheiro e joelhos ao chão.

Oh como Deus queria gritar, como queria chamar-lhes atenção para o que estavam perdendo,  para tratar de mau a natureza e de inferno o mundo.

Como queria dizer que o paraíso era logo ali dentro da alma plena e que a morte nada mais é do que o fim de uma existência então vazia. Mas até ele temia os gritos entoados com ódio e as cruzes levadas com um prazer masoquista e o coração fechado, e o coração doído
.
Estava sentado ao chão e não tive coragem de perguntar nada ao pobre, em algum lugar um trono de ouro, ou vários, esperava por ele. Saiu sem dizer nada para não mais voltar.

Eu entendi. Às vezes a única saída é virar as costas.


Somos nós por nós. Graças a Deus.

O dia em que Bila morreu

Bila estava assustada. Os olhinhos escuros brilhavam de medo enquanto encolhia seu corpinho mais e mais dentro da manta que usava.

A velha olhava para ela enquanto inspirava através do cachimbo velho, o fumo fedido que fazia o nariz de Bila arder.

Era uma velha muito velha, quase não tinha cabelos e suas mãos eram crespas e com veias saltadas. Bila não sabia que alguém podia ficar tão velha e tinha medo daquela, um medo que quase lhe tirava o ar enquanto o coraçãozinho explodia dentro do corpo pequenino.

Sua mãe estava do lado da velha, parecia ansiosa mordendo os lábios enquanto os olhos corriam de Bila para a velha e de volta para Bila.

Quando ela terminou de fumar, começou a mascar ervas que Bila não conhecia, mas o cheiro era doce e bom. Ela mascou e depois cuspiu numa cuia onde jogou o resto do fumo e socou junto com o emplastro que havia sido formado.

A velha aproximou-se de Bila. Bila que queria sumir dentro das próprias roupas, tão encolhida contra o próprio corpo que não passava de uma pequena figura. Bila viu que faltavam dentes na boca quase negra da velha, e uma das mãos ásperas segurou-a pelo queixo. Bila quis chorar, as lágrimas começaram a descer pelas bochechinhas rosadas e então a velha havia se distanciado de novo.

Bila estava com medo.

Bila tinha pavor.

Bila sentia o sangue correr frio.

Bila queria correr.

A mãe puxou a pequena paras os braços longos em um abraço apertado, enquanto sussurrava algo que Bila não entendeu. “Mamãe? Mamãe?”  Ela chamava em vão, enquanto o sussurro deu lugar aos soluços de choro. Bila sentiu o medo descer com uma navalha por suas costas.

A velha se aproximou de novo, olhou atentamente nos olhinhos assustados de Bila e lhe concedeu um sorriso desdentado.

Passou o emplastro na testa da menina que soltou um grito, mas ninguém pareceu se importar.
A velha havia tirado uma adaga velha e curva, muito muito mal feita de dentro das vestes. Bila voltou a gritar pela mãe que soluçava e soluçava cada vez mais alto.

Então se encararam. Os olhos dela eram esbranquiçados enquanto os de Bila eram de um escuro perfeito, cheio de brilho. Outro sorriso desdentado.

-Você é especial, menina. Não tenha medo. Você é especial

Então Bila sentiu a adaga entrar por sua pele, pela carne, fria como uma manhã de inverno e então o corpo todo explodiu de dor. Ela quis gritar mas antes que chegasse à garganta o grito, Bila pendeu nos braços da mãe. Bila sem vida. Os olhinhos pretos vazios de brilho pareciam ainda encarar a velha.


-Ela é especial, moça. Precisava ser assim.

terça-feira, maio 31

Baladas do rei do mar

Era só ele um barquinho divagando juntos pelo mar escuro a observar as estrelas no céu, tentando adivinhar a qual constelação pertenciam. Estava deitado de costas sentindo o vento salgado no rosto quando uma onda agitou seus sonhos e o pequeno barco. Ele não se mexeu, continuou deitado, continuou a olhar para as longínquas estrela sem prestar atenção na grande agitação que se fazia nas profundezas das águas escuras.

Por olhar para o céu, não viu quando o senhor das águas emergiu lânguido e luminoso do mar, seu tritão brilhando estranhamente verde. Chamou seu nome mas ele só atentou para isso na terceira vez. Pôs-se de pé cambaleante, as pequenas ondas agitando o barquinho. Olhava com admiração e medo para a figura mitológica repleta de escamas prateadas e de olhos imensamente negros.

Ele estendeu-lhe uma mão como um convite, e sem pensar, sequer uma vez, o homem a agarrou e então foi puxado para o fundo do mar.

Tudo foi um turbilhão, sentia a água passar depressa por seu corpo e seu rosto, primeiro morna e depois imensamente fria. O ar estava agarrado aos pulmões e o medo pulsante de perdê-lo batia no ritmo do coração. Fora em vão e ele sentiu a água azedar a boca e o nariz entrando dolorosamente nos pulmões, cada tentativa de expulsá-la era um novo sopro de dor ao senti-la voltando em jorros para o corpo. A dor era imensa até que sentiu o cérebro anuviar-se e ela se esgueirar vagarosamente do corpo enrugado pelo sal. Estou morrendo, se não morri, estou morrendo. Foi seu último pensamento antes do nada total.

Acordou numa cama de algas que balançavam serenamente, Sentiu o ar entrando vagarosamente pelas narinas machucadas. Estava completamente nu e se dando conta disso sentiu vergonha da própria nudez mesmo sozinho na cama fasta. Havia luz embaixo do mar, luzes de todas as cores brilhando numa serenidade que fazia querer voltar ao sono indolor, então entraram no quarto as sereias, os corpos de mulher, seis fartos e quadris estreitos até onde começava a longa calda escamada do mesmo prata que vira no barco.

Elas riam fartamente e ele logo soube que aquele seria o som mais bonito que ouviria na vida. Não estranhavam de haver ali um homem, um homem exposto, as pernas flutuando bobamente na água clara. Continuavam a rir quando lhe puxaram bagunçando os cabelos negros, fazendo sorrisos brotarem então dos seus lábios. O levaram para um salão em que era impossível saber onde terminava, as luzes sobrenaturais pairando sobre os seres que dançavam em pares, trios, grupos, os risos e a bebida que logo fora lhe oferecida, o vinho mais doce e forte que já tomara, foi levado as danças, a comer de ostras gigantes que apresentavam pérolas imensamente gigantes,

O homem que o levaram enrolava vagarosamente a imensa barba prateada enquanto flutuava observando os festejos, sorriu para ele quando o viu e fez um gesto de aproximação.

Ele foi, já não se importava com a nudez, com os corpos de humanos e peixes que se trançavam em um só. Queria só mais um pouco de vinho, e talvez só mais um pouco depois.

- Você olhava o céu quando a vida acontecia aqui embaixo. É dos humanos procurar o céu, Talvez traga respostas, talvez traga alguém, talvez não traga nada, mas vocês, vocês não deixam de olhar.

O sorriso dele mostrava dentes demais que eram afiados demais, transformando a figura calma em demônio.

-Só aproveite. Não é a todos que a vida dar a dádiva de viver várias vidas em uma só. Viva a deste dia que vai além das horas, viva tudo que quiser, e depois passe para uma nova, pois quem não está nascendo meu rapaz, está morrendo. Nasça todos os dias.

Então ele nasceu no fundo do mar como nascera de sua mãe, puxado das entranhas do dia, sentindo não a dolorosa primeira passagem do ar, mas a da água, puxado  do desconhecido para outro desconhecido e sorriu à vida. Agradeceu à vida e a todas que viveria pela frente.

Quando acordou o barco ainda balançava serenamente sob a luz das estrelas, e inspirou  o ar de uma nova vida pela segunda vez, A água caiu do corpo pingando no convés, e ele embrigado dos sonhos das sereias gritou para vazio: POR TODAS AS VIDAS QUE EU TIVER.

segunda-feira, maio 23

Imagine

Toda vez que se escreve um texto em que, de alguma forma, o autor traça um paralelo entre suas noções pessoais do que é bom e ruim, ou do que é certo e errado, o leitor que se identifica com as colocações do lado “mauzinho” ataca. E ataca com dizeres que demonstram melhor do que o próprio autor porque existe o lado “mauzinho”.

Veja só, a sociedade nunca foi e nunca será fluida, mas também nunca foi e nunca será seu oposto estático. Ela se movimenta com dificuldade e os padrões costumeiros são extintos ou modificados de acordo com as ações dos indivíduos que formam seu corpo, mesmo que essas ações sejam muitas vezes dar soco em parede. Machuca. Dói. Quem dá o primeiro golpe será indiscutivelmente massacrado e dificilmente encontrará alguém para cuidar de suas feridas. Isso é porque lidamos da forma mais covarde, e aqui posso sim fazer tal colocação abrangente, com aquilo que nos é diferente: nós damos as costas, e se por acaso o diferente insistir em chamar nossa atenção, damos nossos punhos, porque a primeira reação de um ser amedrontado é atacar, ainda que não saiba o que está atacando.

As coisas são assim desde que o mundo é mundo, ou melhor, desde que o ser humano é o ser humano, e por mais que a ciência evolua, o comportamento parece ser muito mais engessado, o que de certa maneira é incoerente já que a evolução é inerente à sobrevivência. Ou talvez ela esteja apenas relacionada ao corpo e nunca ao fluxo de pensamentos, e nunca à alma, de modo que seres “evoluidíssimos” possam construir foguetes e matar outras pessoas por não se reconhecerem nelas ao mesmo tempo.

Só que não me importa a evolução biológica, deixo-a a cargo de quem dela entende, o que me interessa e intriga é o comportamento, e mais do que isso, a grande interrogação que vem junto dele brilhando em neon. O que diabos faz o comportamento, o que diabos É o comportamento e por que ele nos limita e nos transcende e devora e decifra ao mesmo tempo.

Até os dias de hoje dentro do meio em que vivo existe uma barreira ao que não se entende ou não se entende muito bem, mesmo que essas barreiras tenham suas bases em conceitos muitas vezes preconceituosos. Vou dar um exemplo clássico: crianças que porventura tenham algo que as diferencie do “comum”.

Existe um pânico irracional dos adultos de não saber lidar como que não lhes é conhecido. Eu tenho uma prima de seis anos que tem um coleguinha autista. Não o conheço, mas sei que ele está lá nas fotos da turma, nas festinhas, nas brincadeiras e se nunca tivessem falado “olha, um menino autista!” como se um et tivesse se materializado na sala da minha prima eu nunca saberia da sua condição. O curioso é que nem ela sabia, e até hoje ela pouco se importa, não faz diferença para ela, faz diferença para os pais, para a família, para a professora. Eu lembro até hoje como foi dada a “notícia”: vocês sabiam que na turminha de Fulana entrou um menino autista? Pois é, AUTISTA, não sei como vai ser pra professora e pra eles, mas talvez seja algo leve, né?

A família dela nunca procurou saber nada sobre o autismo, nem mesmo o que seria um autismo leve, mas ficou no ar um amargo por saber que uma pessoa “diferente” estava convivendo com os filhinhos normais e perfeitos. Um amargo provocado por uma criança.
Se esse caso é capaz de provocar nas pessoas um instinto de proteção que os deixa pronta para o ataque a essa situação nova, imagine você o que várias pessoas diferentes, crianças ou não, podem provocar.

Imagine uma senhora de oitenta anos que resolve namorar.

Imagine um cadeirante que ame dançar.
Imagine um homem que tenha vontade de casar. Com outro homem. Por amor.

Imagine uma criança que tenha síndrome de down e goste de brincar com outras crianças independentemente do número de cromossomos.

Imagine um negro da favela ser seu colega de faculdade.

Imagine.

Por que quem foge do padrão não pode viver o que você vive? Não machuca, não mata, nem engorda, não impede a felicidade e o prazer de ninguém, então por que a gente acha que tem o poder de impedir a vida de ser vivida?

Quem definiu o que é o certo e o que é o errado além do nosso ponto de vista? Se quem o define são nossas atitudes e escolhas e consequentemente a maneira como enxergamos o mundo, por que não podemos acrescentar no nosso mundo coisas novas e engrandecê-lo, colori-lo?

Por que tornar ruim o que pode ser bom?