Era só ele um barquinho divagando juntos pelo mar escuro a observar as estrelas no céu, tentando adivinhar a qual constelação pertenciam. Estava deitado de costas sentindo o vento salgado no rosto quando uma onda agitou seus sonhos e o pequeno barco. Ele não se mexeu, continuou deitado, continuou a olhar para as longínquas estrela sem prestar atenção na grande agitação que se fazia nas profundezas das águas escuras.
Por olhar para o céu, não viu quando o senhor das águas emergiu lânguido e luminoso do mar, seu tritão brilhando estranhamente verde. Chamou seu nome mas ele só atentou para isso na terceira vez. Pôs-se de pé cambaleante, as pequenas ondas agitando o barquinho. Olhava com admiração e medo para a figura mitológica repleta de escamas prateadas e de olhos imensamente negros.
Ele estendeu-lhe uma mão como um convite, e sem pensar, sequer uma vez, o homem a agarrou e então foi puxado para o fundo do mar.
Tudo foi um turbilhão, sentia a água passar depressa por seu corpo e seu rosto, primeiro morna e depois imensamente fria. O ar estava agarrado aos pulmões e o medo pulsante de perdê-lo batia no ritmo do coração. Fora em vão e ele sentiu a água azedar a boca e o nariz entrando dolorosamente nos pulmões, cada tentativa de expulsá-la era um novo sopro de dor ao senti-la voltando em jorros para o corpo. A dor era imensa até que sentiu o cérebro anuviar-se e ela se esgueirar vagarosamente do corpo enrugado pelo sal. Estou morrendo, se não morri, estou morrendo. Foi seu último pensamento antes do nada total.
Acordou numa cama de algas que balançavam serenamente, Sentiu o ar entrando vagarosamente pelas narinas machucadas. Estava completamente nu e se dando conta disso sentiu vergonha da própria nudez mesmo sozinho na cama fasta. Havia luz embaixo do mar, luzes de todas as cores brilhando numa serenidade que fazia querer voltar ao sono indolor, então entraram no quarto as sereias, os corpos de mulher, seis fartos e quadris estreitos até onde começava a longa calda escamada do mesmo prata que vira no barco.
Elas riam fartamente e ele logo soube que aquele seria o som mais bonito que ouviria na vida. Não estranhavam de haver ali um homem, um homem exposto, as pernas flutuando bobamente na água clara. Continuavam a rir quando lhe puxaram bagunçando os cabelos negros, fazendo sorrisos brotarem então dos seus lábios. O levaram para um salão em que era impossível saber onde terminava, as luzes sobrenaturais pairando sobre os seres que dançavam em pares, trios, grupos, os risos e a bebida que logo fora lhe oferecida, o vinho mais doce e forte que já tomara, foi levado as danças, a comer de ostras gigantes que apresentavam pérolas imensamente gigantes,
O homem que o levaram enrolava vagarosamente a imensa barba prateada enquanto flutuava observando os festejos, sorriu para ele quando o viu e fez um gesto de aproximação.
Ele foi, já não se importava com a nudez, com os corpos de humanos e peixes que se trançavam em um só. Queria só mais um pouco de vinho, e talvez só mais um pouco depois.
- Você olhava o céu quando a vida acontecia aqui embaixo. É dos humanos procurar o céu, Talvez traga respostas, talvez traga alguém, talvez não traga nada, mas vocês, vocês não deixam de olhar.
O sorriso dele mostrava dentes demais que eram afiados demais, transformando a figura calma em demônio.
-Só aproveite. Não é a todos que a vida dar a dádiva de viver várias vidas em uma só. Viva a deste dia que vai além das horas, viva tudo que quiser, e depois passe para uma nova, pois quem não está nascendo meu rapaz, está morrendo. Nasça todos os dias.
Então ele nasceu no fundo do mar como nascera de sua mãe, puxado das entranhas do dia, sentindo não a dolorosa primeira passagem do ar, mas a da água, puxado do desconhecido para outro desconhecido e sorriu à vida. Agradeceu à vida e a todas que viveria pela frente.
Quando acordou o barco ainda balançava serenamente sob a luz das estrelas, e inspirou o ar de uma nova vida pela segunda vez, A água caiu do corpo pingando no convés, e ele embrigado dos sonhos das sereias gritou para vazio: POR TODAS AS VIDAS QUE EU TIVER.
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