A mulher que me encarava parecia ser mais nova que eu.
Feições delicadas e simples marcadas em uma pele morena que parecia brilhar
mais do que seria natural. Os olhos não brilhavam. Eram de um castanho escuro
denso que nada deixavam transparecer, mesmo que mantivesse um sorriso na boca
desde que os pousara em mim. O arrepio em minhas costas dizia que os lábios
rosados e convidativos guardavam presas, e ela não teria dúvida de usá-las
contra mim.
Convidou-me a segui-la pela rua de pedras quase não iluminada
a não ser por pontos de luz saídos de alguma janela acima de nossas cabeças. A
vida das pessoas ao nosso redor continuava normalmente, quanto a minha, não
saberia por quanto tempo duraria dentro
do corpo. Meus tropeções nas pedras não
lhe causavam nenhuma reação, continuava o caminho escuro como se flutuasse
centímetros acima do chão, e por mais que soubesse que aquela mulher calçava
botas pesadas, tentava com esforço ouvir o atrito delas, tentando fugir da
ilusão qualquer em que ela quisesse me confinar.
Deu uma virada brusca para esquerda onde eu nunca teria
visto caminho, entrando por uma passagem quase fechada cheirando a umidade e barro,
podia sentir as paredes roçando em meus braços enquanto lutava contra o medo
que me subia pela garganta. Olhei pra cima e só vi mais escuridão, o céu não
tinha estrelas ou eu já não pertencia a qualquer lugar coberto por elas.
Enquanto as pedras pareciam se estreitar mais e o ar entrava
com dificuldade por minhas narinas, consegui vislumbrar pequenos pontos de luz
a frente que pareciam sair do nada. Finas flechas de dourado claro suspendiam a
poeira no ar como se fosse dia enquanto a claridade aumentava vindo de todos
os lados, frestas na parede, no chão,
até mesmo de cima. Minha guia parou, uma
silhueta pequena contra a luz, completamente negra.
- Acredito que a partir daqui o senhor conseguirá o que quer
sozinho. Minha tarefa foi cumprida.
A voz dela era melódica e sussurrante, parecia falar mais
para si do que para mim e talvez o estivesse fazendo se não fosse o “senhor”.
- Pensei que as formalidades eram deixadas de lados quando
se dizia os votos. Já não sou nenhum senhor.
- Devo lembra-lo de que ainda não fez voto algum. E avisá-lo
de nunca se esquecer do que é.
Ela aproximou-se de mim, suas mãos pequenas e pálidas
envolvendo as minhas em um aperto morno. Parecia ainda menor do que da primeira
vez que a tinha visto. Talvez não passasse de uma criança, talvez não fosse ser
algum...
- Creio que o senhor se pergunta por que aqui, não?
- Em me pergunto muitas coisas no momento. Mas sim, achei
que seria escoltado e levado pela entrada principal da academia.
- Academia? – ela zombava sem tirar os olhos dos meus,
fazendo com que eu não conseguisse parar de olhá-la. – Não sabe nada sobre o
lugar para onde vai, senhor?
Não me deu chance de responder e quando soltou minhas mãos
um frio intenso pareceu entrar por dentro das minhas vestes, gelando os ossos.
- Sua primeira tarefa: ouvir.
É de fundamental importância que consiga escutar tudo que acontece ao
seu redor. Um suspiro, uma sombra, o silêncio. Você tem que ouvir, senhor.
Chegamos diante uma porta de madeira simples que parecia
existir por uma eternidade antes de mim
e que ainda existiria por uma eternidade depois. A luz lutava pra sair
por entre suas frestas negras, em uma guerra ininterrupta contra madeira e
ferro.
-Entre.
Parei vacilante onde estava enquanto ela se espremia contra
a parede para me dar passagem.
-Entre.
Tentei olhá-la nos olhos mais uma vez, mas a luz não deixava
que visse nada além de sombra. Minha primeira tarefa deveria ser coragem,
alguém deveria tê-los avisado de que não possuía as qualidades tão atribuídas à
minha família. Lembrei-me de meu pai, convalescendo na cama, a meia luz como gostava de ficar, ainda
encontrando forças para me falar antes de minha partida. Era para aquilo que eu
tinha nascido afinal, não era, pai? Pra enfrentar uma porta?
Respirar doía enquanto o ar ficava mais frio, avancei em
direção a maçaneta simples e com o coração saltando do peito, girei.
Não havia nada além do mais puro escuro enquanto sentia a porta
se fechando lentamente atrás de mim. O
negrume era tão denso que eu poderia tocá-lo, apesar de não conseguir ver meus
braços. Minhas mãos tateavam meu próprio corpo como se para ter certeza de que
eu continuava existindo, consegui sentir
minha boca, o nariz, os olhos que de nada serviam.
“Escute” surgiu a voz da moça, de quem nunca soube o nome,
na minha cabeça. “Escute, Henrique”. Não
havia o que escutar, o silêncio era pesado e mortal, sufocava mais que o frio que sentira minutos antes. O
ar entrava com dificuldade por minha garganta ansiando uma crise de pânico que
não tinha há tempos. Meus joelhos encontram bruscamente um chão de pedra bruta
enquanto a escuridão parecia se avolumar para cima de mim, esmagando-me contra
meu próprio corpo. Foi então que eu ouvi um grito engasgado de medo vindo das
profundezas. Um grito que tinha saído de
mim.