sábado, maio 24

Quando dois invisíveis se cruzam

O momento em que eu quero mais ser invisível é quando alguém, por algum motivo não aparente, presta atenção em mim. Sabe quando alguém aleatoriamente esquece os olhos em cima de você, ou te escolhe dentre várias possibilidades pra perguntar as horas? Depois do choque de ter sido vista eu balanço os pulsos no ar mostrando que não ando com relógio até lembrar que carrego as horas no bolso. Maldito seja o celular. 

Há ainda o tipo pior que a pessoa simplesmente desconhecida: aquela que se conhece pouco. Geralmente o remotamente conhecido se apresenta com sorrisos nas horas em que o observador estrategicamente invisível, no caso eu, encontra-se em seus piores momentos de raiva, angústia, tristeza ou simplesmente apatia e, como bom observador, você se pega de repente observando que ele está te observando. Hora em que todos os invisíveis queriam um buraco pra se enfiar dentro justamente por serem visíveis.

Digamos, por exemplo, que você tenta se enfiar o máximo possível na parede da porta da festa enquanto espera aquela pessoa que gosta sem tirar o olho do celular, sem descruzar braços e com um cigarro sendo tragado atrás do outro pra não conversar. Você é imperceptível. Você é imperceptível até o momento, aquele doloroso momento do erguer os olhos e eles darem nos olhos do cara na outra esquina, o pseudo conhecido com quem trocou duas ou três palavras no estágio que fez no ano anterior, que também tentava ser invisível, de braços cruzados, cigarro na boca e blusa cinza se confundindo com a parede também cinza e pálida da outra rua. 

No momento em que ele olha pra você e abre um sorriso há duas possibilidades, não consigo pensar numa terceira porque precisaria ser menos ansiosa pra tanto. As possibilidades são fingir que continua invisível, olhar pra tudo menos para o descobridor ou se tornar  uma descoberta. 

Tornei-me descoberta. Quando se aprende a observar e vive-se disso como eu, o brilho nos olhos, o franzir dos lábios, o jeito como joga os braços quando anda, o jeito que passa a mão no cotovelo quando tá parado, tudo isso instintivamente aguça  a curiosidade e, meu bem, ser curiosa é maior do que ser anônima.

- E aí, quanto tempo. 

Sorriso bonito.

- Pois é, como tá?

Tímido, quase transparente. Dois furos na orelha e anel de coco no dedo anelar esquerdo.

- Bem... (pausa) Então, o que tá rolando aí?

- Rock.

- Mas como é o esquema?

A blusa cinza na verdade é um moletom cinza com as mangas puxadas até os cotovelos. Cadê o seu moletom cinza, porra?

- Paga 15 reais, lá dentro tem bebida e tal, festa normal. Rock anos 80.

- Anos 80?

- É, é temático.

Pessoas invisíveis geralmente são inarticuladas. Eu sou inarticulada. Última tragada do cigarro, ele vai pensar o que se eu já acender outro?

- Legal... (pausa. Inarticulados, lembra?) Eu to com uns amigos ali no bar, quando acabar a gente vem pra cá.

- Vem mesmo, é legal.

Apesar do olhar amigável os meus preferem olhar os carros na rua.

- A gente vem.

- Beleza...

- Até mais então.

- Até.

Meu sorriso é um enrugar de lábios quando imperceptível.

- Bom te ver, moça.

Meu riso sai pelo nariz por causa da boca cerrada. "Bom te ver" fala minha consciência. Nada sai dos lábios. 

Ele atravessa a rua voltando a ser invisível, eu volto pro muro sempre invisível. Celular. Meia noite e meia. Subo a rua em busca de um táxi.

Cadê você, porra?

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