Eu quebrei meu coração no dia 25 de outubro de 2002. Quando me lembro sempre é como se tivesse sido apenas dois minutos atrás.
Eu sentada num banco tosco de madeira no fundo de casa retorcendo a musculatura dua e os nervos grossos enquanto o sangue escuro escorria invisível por minhas mãos de menina.
Um coração desfigurado não tem conserto, por força somente biológica ele continua a fazer o que lhe convém, bate e bate muito forte dentro de mim. Desde que o quebrei ele nunca mais bateu direito...
Existia uma pequena noção do que era sofrimento antes dessa minha mutilação, a mesma noção que tem um peixe de voar. Nada se compara a dor fria e metálica que é a dor do amor.
Amar dói, e mesmo um coração quebrado ainda sabe amar. Ama torto, desacreditado, doente, mas ama. E sabe doer.
Toda pessoa, todo livro, toda música. Tudo que eu vi e passei nos últimos doze anos me machucou. Sempre fui fechada e me tornei mais ainda, mesmo que aberta ao riso e aos novos amigos. Descobri que um coração partido amolece a alma e a minha se conturbou e se tornou água turva acompanhada de uma agulha arranhando um disco que não toca nada.
Fico surpresa quando aparece alguma coisa que eu gosto e quando eu gosto gosto tanto...
Sorvete.
Madrugada.
Abraço.
Bacon.
Minhas mirradas alegrias que me fazem sobreviver...
Minha mãe.
Minha irmã.
Minha vó.
Sou tão agradecida por todas as pessoas que me aceitam de coração quebrado.
Barulho.
Eu tenho necessidade do barulho mais silencioso que são as palavras. Meu alimento, minha continuação.
Eu nunca vou dar silêncio. quando eu morrer me tapem a boca pra talvez, em outra vida, ter essa virtude.
Silêncio nesta vida, Deus, é covardia - grito dos meus pulmões silenciosos. Covardia.
quarta-feira, junho 11
terça-feira, maio 27
Henrique - segunda passagem.
A mulher que me encarava parecia ser mais nova que eu.
Feições delicadas e simples marcadas em uma pele morena que parecia brilhar
mais do que seria natural. Os olhos não brilhavam. Eram de um castanho escuro
denso que nada deixavam transparecer, mesmo que mantivesse um sorriso na boca
desde que os pousara em mim. O arrepio em minhas costas dizia que os lábios
rosados e convidativos guardavam presas, e ela não teria dúvida de usá-las
contra mim.
Convidou-me a segui-la pela rua de pedras quase não iluminada
a não ser por pontos de luz saídos de alguma janela acima de nossas cabeças. A
vida das pessoas ao nosso redor continuava normalmente, quanto a minha, não
saberia por quanto tempo duraria dentro
do corpo. Meus tropeções nas pedras não
lhe causavam nenhuma reação, continuava o caminho escuro como se flutuasse
centímetros acima do chão, e por mais que soubesse que aquela mulher calçava
botas pesadas, tentava com esforço ouvir o atrito delas, tentando fugir da
ilusão qualquer em que ela quisesse me confinar.
Deu uma virada brusca para esquerda onde eu nunca teria
visto caminho, entrando por uma passagem quase fechada cheirando a umidade e barro,
podia sentir as paredes roçando em meus braços enquanto lutava contra o medo
que me subia pela garganta. Olhei pra cima e só vi mais escuridão, o céu não
tinha estrelas ou eu já não pertencia a qualquer lugar coberto por elas.
Enquanto as pedras pareciam se estreitar mais e o ar entrava
com dificuldade por minhas narinas, consegui vislumbrar pequenos pontos de luz
a frente que pareciam sair do nada. Finas flechas de dourado claro suspendiam a
poeira no ar como se fosse dia enquanto a claridade aumentava vindo de todos
os lados, frestas na parede, no chão,
até mesmo de cima. Minha guia parou, uma
silhueta pequena contra a luz, completamente negra.
- Acredito que a partir daqui o senhor conseguirá o que quer
sozinho. Minha tarefa foi cumprida.
A voz dela era melódica e sussurrante, parecia falar mais
para si do que para mim e talvez o estivesse fazendo se não fosse o “senhor”.
- Pensei que as formalidades eram deixadas de lados quando
se dizia os votos. Já não sou nenhum senhor.
- Devo lembra-lo de que ainda não fez voto algum. E avisá-lo
de nunca se esquecer do que é.
Ela aproximou-se de mim, suas mãos pequenas e pálidas
envolvendo as minhas em um aperto morno. Parecia ainda menor do que da primeira
vez que a tinha visto. Talvez não passasse de uma criança, talvez não fosse ser
algum...
- Creio que o senhor se pergunta por que aqui, não?
- Em me pergunto muitas coisas no momento. Mas sim, achei
que seria escoltado e levado pela entrada principal da academia.
- Academia? – ela zombava sem tirar os olhos dos meus,
fazendo com que eu não conseguisse parar de olhá-la. – Não sabe nada sobre o
lugar para onde vai, senhor?
Não me deu chance de responder e quando soltou minhas mãos
um frio intenso pareceu entrar por dentro das minhas vestes, gelando os ossos.
- Sua primeira tarefa: ouvir.
É de fundamental importância que consiga escutar tudo que acontece ao
seu redor. Um suspiro, uma sombra, o silêncio. Você tem que ouvir, senhor.
Chegamos diante uma porta de madeira simples que parecia
existir por uma eternidade antes de mim
e que ainda existiria por uma eternidade depois. A luz lutava pra sair
por entre suas frestas negras, em uma guerra ininterrupta contra madeira e
ferro.
-Entre.
Parei vacilante onde estava enquanto ela se espremia contra
a parede para me dar passagem.
-Entre.
Tentei olhá-la nos olhos mais uma vez, mas a luz não deixava
que visse nada além de sombra. Minha primeira tarefa deveria ser coragem,
alguém deveria tê-los avisado de que não possuía as qualidades tão atribuídas à
minha família. Lembrei-me de meu pai, convalescendo na cama, a meia luz como gostava de ficar, ainda
encontrando forças para me falar antes de minha partida. Era para aquilo que eu
tinha nascido afinal, não era, pai? Pra enfrentar uma porta?
Respirar doía enquanto o ar ficava mais frio, avancei em
direção a maçaneta simples e com o coração saltando do peito, girei.
Não havia nada além do mais puro escuro enquanto sentia a porta
se fechando lentamente atrás de mim. O
negrume era tão denso que eu poderia tocá-lo, apesar de não conseguir ver meus
braços. Minhas mãos tateavam meu próprio corpo como se para ter certeza de que
eu continuava existindo, consegui sentir
minha boca, o nariz, os olhos que de nada serviam.
“Escute” surgiu a voz da moça, de quem nunca soube o nome,
na minha cabeça. “Escute, Henrique”. Não
havia o que escutar, o silêncio era pesado e mortal, sufocava mais que o frio que sentira minutos antes. O
ar entrava com dificuldade por minha garganta ansiando uma crise de pânico que
não tinha há tempos. Meus joelhos encontram bruscamente um chão de pedra bruta
enquanto a escuridão parecia se avolumar para cima de mim, esmagando-me contra
meu próprio corpo. Foi então que eu ouvi um grito engasgado de medo vindo das
profundezas. Um grito que tinha saído de
mim.
sábado, maio 24
Quando dois invisíveis se cruzam
O momento em que eu quero mais ser invisível é quando alguém, por algum motivo não aparente, presta atenção em mim. Sabe quando alguém aleatoriamente esquece os olhos em cima de você, ou te escolhe dentre várias possibilidades pra perguntar as horas? Depois do choque de ter sido vista eu balanço os pulsos no ar mostrando que não ando com relógio até lembrar que carrego as horas no bolso. Maldito seja o celular.
Há ainda o tipo pior que a pessoa simplesmente desconhecida: aquela que se conhece pouco. Geralmente o remotamente conhecido se apresenta com sorrisos nas horas em que o observador estrategicamente invisível, no caso eu, encontra-se em seus piores momentos de raiva, angústia, tristeza ou simplesmente apatia e, como bom observador, você se pega de repente observando que ele está te observando. Hora em que todos os invisíveis queriam um buraco pra se enfiar dentro justamente por serem visíveis.
Digamos, por exemplo, que você tenta se enfiar o máximo possível na parede da porta da festa enquanto espera aquela pessoa que gosta sem tirar o olho do celular, sem descruzar braços e com um cigarro sendo tragado atrás do outro pra não conversar. Você é imperceptível. Você é imperceptível até o momento, aquele doloroso momento do erguer os olhos e eles darem nos olhos do cara na outra esquina, o pseudo conhecido com quem trocou duas ou três palavras no estágio que fez no ano anterior, que também tentava ser invisível, de braços cruzados, cigarro na boca e blusa cinza se confundindo com a parede também cinza e pálida da outra rua.
No momento em que ele olha pra você e abre um sorriso há duas possibilidades, não consigo pensar numa terceira porque precisaria ser menos ansiosa pra tanto. As possibilidades são fingir que continua invisível, olhar pra tudo menos para o descobridor ou se tornar uma descoberta.
Tornei-me descoberta. Quando se aprende a observar e vive-se disso como eu, o brilho nos olhos, o franzir dos lábios, o jeito como joga os braços quando anda, o jeito que passa a mão no cotovelo quando tá parado, tudo isso instintivamente aguça a curiosidade e, meu bem, ser curiosa é maior do que ser anônima.
- E aí, quanto tempo.
Sorriso bonito.
- Pois é, como tá?
Tímido, quase transparente. Dois furos na orelha e anel de coco no dedo anelar esquerdo.
- Bem... (pausa) Então, o que tá rolando aí?
- Rock.
- Mas como é o esquema?
A blusa cinza na verdade é um moletom cinza com as mangas puxadas até os cotovelos. Cadê o seu moletom cinza, porra?
- Paga 15 reais, lá dentro tem bebida e tal, festa normal. Rock anos 80.
- Anos 80?
- É, é temático.
Pessoas invisíveis geralmente são inarticuladas. Eu sou inarticulada. Última tragada do cigarro, ele vai pensar o que se eu já acender outro?
- Legal... (pausa. Inarticulados, lembra?) Eu to com uns amigos ali no bar, quando acabar a gente vem pra cá.
- Vem mesmo, é legal.
Apesar do olhar amigável os meus preferem olhar os carros na rua.
- A gente vem.
- Beleza...
- Até mais então.
- Até.
Meu sorriso é um enrugar de lábios quando imperceptível.
- Bom te ver, moça.
Meu riso sai pelo nariz por causa da boca cerrada. "Bom te ver" fala minha consciência. Nada sai dos lábios.
Ele atravessa a rua voltando a ser invisível, eu volto pro muro sempre invisível. Celular. Meia noite e meia. Subo a rua em busca de um táxi.
Cadê você, porra?
quarta-feira, maio 21
Poeminha pro santo.
Amarrei no pulso fita do Senhor do Bonfim
Pra te desejar três vezes pra mim.
Em qual delas você vem?
Pra te desejar três vezes pra mim.
Em qual delas você vem?
Como um soco no estômago.
Hoje quando saía da padaria
carregando o saco de oito pães de cada dia me permiti olhar além do que meus
olhos estão acostumados a ver. Eles pararam, e não poderia ser diferente, em
uma senhora muita velha ou talvez tenha sido apenas o tempo a vida cruel que
lhe deixaram aquelas marcas, muito magra e muito negra, deitada contra o muro
sujo do prédio logo ao lado. Contra seu corpo havia um cobertor de lã de
aparência pesada e áspera que ela agarrava como fosse um escudo contra o frio e
o mundo. Meus olhos, mal acostumados a olhar a miséria que me rodeia todos os
dias, primeiro focaram no vermelho daquele escudo. Era vivo como sangue que sai
de um corte novo. A lã viva contra o corpo magro rodeado por sacolinhas de plásticos
cortou meu coração em pedacinhos e eu não consegui desgrudar meus olhos dela.
Eram olhos mornos, escuros e desacreditados. Ela se permitiu me olhar também,
mas o que pensou da menina bem agasalhada arrastando os tênis surrados no chão
e levando uma sacola de pães eu nunca saberei. Eram olhos desconfiados que não
permitiam a qualquer pessoa saber o que se passava por trás, evidente estava
apenas a miséria. Ofereci um pão com a voz esganiçada pela vergonha de reclamar
de tudo enquanto ela deveria passar todos os dias por ali, mas invisível. Ela
aceitou cordialmente com a cabeça enquanto eu retirava dois e lhe passava. “Pra
mais tarde” eu disse oferecendo dessa vez um sorriso. “Pra mais tarde não moça,
a gente não sabe quando tem mais tarde. ” Desta vez quem me deu um sorriso foi
ela, sorriso despedaçado e frio mas ainda assim um sorriso. Eu não soube mais o
que dizer então me levantei, acenei um até logo e continuei a andar. Ela ainda
gritou um fique com Deus que eu ignorei enquanto pedia a Deus que ficasse com
ela.
sexta-feira, maio 9
Tempestade em copo d'água fria.
- Há um tornado vindo aí.
Havia riso na voz de Joe, o pavor
estava concentrado todo dentro dos olhos amarelados pela doença. Olhava para o
céu como se o dito tornado fosse se formar em cima da sua cabeça.
Mary não conseguia mais olhar o
céu. Da última vez que olhara estava roxo e lívido de fúria. As grandes e
gordas nuvens cor de chumbo agitavam-se numa dança mortal que parecia não
querer deixar sobreviventes. Fazia cinco
minutos que ela havia tapado os olhos azuis com as mãos sujas de terra enquanto
o vento assobiava em seus ouvidos, uivando a dor que a terra sentiria.
- Hey, pequena, levanta! Abre
esses olhinhos abre, a gente precisa sair daqui. Abre.
As mãos de Joe seguravam as suas
próprias, mãos ásperas e grandes que primeiro foram suaves e depois mostraram
sua força. Ele a machucava enquanto os dois lutavam na escuridão dos olhos
dela, fechados, cerrados, medrosos. Ele havia conseguido lhe tirar as mãos do
rosto, mas não a faria enxergar.
- Levanta, menina, levanta. E
olha pra mim, olha pra mim, Mary! Não olha o céu, olha pra mim.
Ele a sacudia enquanto falava, as
mãos se apertando em volta dos braços finos e criando marcas que demorariam a
sair. Mary sentia as lágrimas quentes começarem a descer pelo rosto, foi quando
Joe a abraçou com a mesma força que a balançava e de repente a dor era menor
que o sofrimento.
- Olha pra mim, Mary, olha pra
mim por favor. A gente precisa sair daqui, entende? Precisa.
Então ela olhou e no lugar do céu
perturbador havia apenas o rosto velho e cansado de Joe. Haviam as rugas e
barba acinzentada, a cicatriz que cortava a sobrancelha esquerda e a boca fina.
E havia os olhos amarelos pela doença tão cheios de lágrimas quanto os seus
pequeninos azuis.
Levantaram-se os dois do lamaçal
que se transformava o jardim dos fundos do casebre velho. Levantaram e correram
contra o vento, contra a morte. E contra o medo.
O sol ardia sobre a pele nua das
crianças que corriam soltando gritos de felicidade em direção ao mar.
Era um agosto sufocante em que o
ar demorava demais pra chegar aos pulmões e entrava ardendo pelas narinas
machucadas pela seca. Mas eles eram só crianças, não se lembravam que quando a
noite chegasse iam chorar enquanto as mães gritariam lembrando de terem falado
pra não pegar o sol do meio dia enquanto espalhavam loção na pele machucada e
vermelha. Não lembravam que a haveria noite, que existia momento depois dali,
do mar, do gosto de sal e do sol acima deles.
-A gente vai entrar mas até onde
der pé, tá? E se vir uma onda muito grande a gente segura um no outro! – Camila
falava rindo enquanto as espumas acariciavam suas pernas magras e os dedos se perdiam
dentro da areia.
-Tá! Você já disse, vem logo!
Ele já havia ido na frente, a
água batendo na cintura e deixando-o mais alto a cada onda. E continuou indo
enquanto ela gritava e ria por trás dele e indo até quando não sentiu mais o
chão.
...
- Juntos?
- Juntos.
- No três?
- Aham. – ele riu, ela também e
uma covinha se formou na bochecha. Havia algo de nervoso na respiração
descompassada dele e nas rugas que se formavam na testa dela.
- E se der problema?
- Deu.
Riram de novo.
- No Três? – ele assentiu com a
cabeça e ela riu de novo.
- Vai. Um, dois...
E ele já tinha virado o copo.
- Lembra da época em que a gente
não precisava de remédio?
-Lembra da época em que você não
precisava de antidepressivo?
- Ansiolíticos, reguladores de
humor.
-Terapia!
-Micro-fisioterapia.
-Yoga!
-Meditação.
- Viagem astral...
-Lembra da época em que a viagem
era outra?
Ele apertou ainda mais a mão na
dela, entrelaçando os dedos e dividindo um pouco mais da vida, os dois olhando
para o céu contemplando o brilho de estrelas mortas.
- Era melhor, não era?
- Era.
Os olhos se encontraram.
- E era pior também.
As bocas se encontraram.
- Era. Bem pior.
- Eu olho pra você e vejo um
pouquinho de mim.
- Eu também.
- Você é um cara bacana, sabia?
Ele riu o riso mais sério que ela
já tinha escutado.
-Você não sabe do que tá falando,
você não me conhece.
Os olhos se encontraram.
- Eu olho pra você e me sinto em
casa. Eu olho pra você e é bom. Olho e não tenho ressaca, não preocupo minha
mãe...
Silêncio.
- É bom.
- Me dá um abraço?
- Dou até três.
As almas se encontraram.
quarta-feira, janeiro 1
Conto do avô
O
corredor estava cheio de pernas, gritos e do barulho irritante dos tênis de
borracha contra os azulejos bem encerados. A algazarra de meus primos mais
novos era tão infernal quanto a de qualquer grupo de meninos de sete e nove
anos de idade pode ser, e foi interrompida a empurrões quando a mais gorda de
minhas tias com cabelo recém tingidos de loiro amarelo em busca de jovialidade
subiu as escadas gritando mais alto que a molecada para irem pro quintal porque
o avô precisava de sossego.
O
avô, que também era o meu, gritava do quarto sem ser ouvido, o esforço da
garganta envelhecida não conseguindo alcançar as notas graves de um tempo
passado. Observei da porta enquanto ele resmungava com os punhos semirrígidos
para as paredes que o ignoravam tão solenemente quanto minha família. Ele logo
se cansou, mas não antes de focar os olhos fatigados por um corolário de
doenças em mim.
“Quem
é que está aí”?
A
desconfiança na voz que sibilava ao buscar por força era maior que a
curiosidade. Esperei pacientemente que ele pegasse os óculos no criado ao lado
da cama e os colocasse de melhor maneira sobre o nariz afilado antes de saciar
os pensamentos do velho. Estreitava os olhos pequenos e lambia os lábios finos
que ficavam lubrificados de saliva, mas ainda assim pareceu não me reconhecer.
“Sou
eu, vô, João Carlos, sua benção.”
Meu
nome não pareceu satisfazer sua curiosidade, continuava a me olhar de lado,
estreitando a vista e enfiando os dedos por debaixo das lentes grossas para
coçar os olhos miúdos.
“João
Carlos é? João Carlos... De Mária Eulália ou de Emília?”
“Emília,
vovô.”
“Hum.”
Os braços finos e manchados fizeram força para erguer o corpo frágil e quando
fiz menção de me aproximar para ajuda-lo, recusou com um aceno. “Sabia que era
o de Emília, o outro foi morar a muitos anos em São Paulo e Lalinha ainda
espera que volte. É uma tola, cheia de esperanças que só as mães têm, depois
que a gente coloca filho no mundo não consegue mais controlar a cabeça deles,
sabia? Aposto que não sabia. Chegue mais João Carlos, não consigo te ver daí.”
Quando
eu era pequeno, o quarto do meu avô era um local sagrado em que ninguém
entrava. Ficava da porta com dois primos apostando quem se encorajava a dar
passos para dentro daquele grande santuário. Uma vez meu primo Rodrigo chegou
até a cama e passou os dedos de leve por sobre a colcha e dali em diante se
tornara nosso herói.
Havia
imagens de santos por todos os lados e nossas senhoras para todos os gostos e
desejos que olhavam sempre com um semblante mais triste do que terno. Uma vez
perguntei minha vó Maria porque a mãe de Jesus parecia tão triste e ela disse
que a culpa era toda nossa e que devíamos pagar por existir. Ela possuía a
mesma expressão triste.
O
avô de minhas lembranças era alto e sisudo, de constituição forte apesar de
magro, sempre com os cabelos negros e fartos penteados disciplinadamente de
lado e barba feita. Era um homem bonito e elegante e eu sempre estufava um
pouco o peitoral quando alguma de minhas tias falava que me parecia cada vez
mais com ele. Ver o herói de minha infância tão mirrado e fraco na cama imensa
daquele quarto velado por Deus embrulhou meu estômago e o medo do destino que
me espera ser semelhante àquele correu queimando por minhas veias.
Postei-me
de modo que a luz fraca que lutava para entrar por uma fresta da cortina
incidisse sobre mim e sorri. Tentei parecer mais alto e mais forte. Tentei
naqueles poucos minutos ser mais homem do que fui por toda minha vida.
“Cristo.
É como ver um fantasma, não é mesmo, João Carlos?”
A
expressão dele enquanto me examinava era carrancuda, mas o sorriso que aparecia
no canto da boca murcha talvez denunciasse que estava feliz com o que via, já o
meu havia congelado na boca. Para mim aquilo tudo era como ver o futuro.
“Sabe,
se sua avó ainda estivesse aqui ficaria louca com você. Ela gostava muito de
fantasmas.”
Aproximei-me
da cama e pela primeira vez ousei encostar à cama de meus avós. Ainda era
bonita. De jacarandá e formas masculinas, combinava com a figura a quem
pertencia. Meu avô sempre fora aventureiro e boêmio, soube disso depois de
velho, mas em minha imaginação de criança era sempre um general.
“Vovó
estava doente, vovô, é diferente de fantasmas.”
Ofereci
um sorriso e ele me respondeu com um escarro em um lenço de seda que estava ao
seu lado.
“Gostava
de fantasmas isso sim. Dizia estar desesperada, e chorava com suas tias e
chorava comigo e rezava na igreja como uma Madalena arrependida. Falava “oh, Geraldo,
e se um dia não reconhecê-lo mais?” A miserável partiu meu coração. Então um
dia a peguei de joelhos, apesar de praguejar contra a artrite, agradecendo a
Jesus por esquecer de estar velha. Ela preferia os fantasmas”
Havia
amargura em sua voz e também em seus olhos quando os confrontou com os meus. A
figura distante e idealizada também sofria e constatar que meu avô também tinha
sentimentos chocou-me mais do que a visão de seu definhamento.
Em
criança andávamos juntos a cavalo, ele sempre fumando um cigarro, ia a frente
abrindo as porteiras sem falar palavra. Eu e as meninas íamos ao meio,
acompanhava-o com admiração entre os risinhos incontroláveis das moças e as
reclamações pelo longo tempo em cima da sela. Guilherme, meu primo mais velho
fechava o cortejo e quando parávamos para descansar ia ter com meu avô, com
quem tinha conversas curtas de mais falar do que ouvir. Despertava inveja em
todos nós.
“Não
acho que seja isso, vô, era a doença falando. Vovó amava viver e ainda mais o
senhor.”
Não
tinha certeza se alguma vez minha avó amou meu avô de fato. A verdade é que a
casa sempre cochichava que ela nunca o perdoou por tê-la deixado sozinha com
cinco filhos pequenos para tentar a vida no Pará. Disse que voltaria rico, que o ouro estava lá. Voltou trinta quilos
mais magro e só com a roupa do corpo em farrapos, deu-lhe surra quando ela
levantou a voz para ele e depois dormiu por dois dias. Nunca mais falaram
disso.
“Tia
Marília pediu que examinasse o senhor. A tosse está deixando todo mundo
preocupado.”
O
riso de meu avô parecia mais um chiado e o corpo todo se contorcia a cada
tentativa de gargalhada.
“A
tosse é? A tosse é tão companheira quanto qualquer um dessa casa, João Carlos.
Falaram o mesmo do intestino e da bexiga e eu não morri. Toda vez que fica mais
forte, Marília sobe as escadas correndo e entra pela porta arfando como uma
porca e fazendo barulho suficiente pra ressuscitar um morto a três dias. E sua
avó reclamava sempre do ganho de peso dela. Eu acho que ter uma filha gorda tem
suas vantagens. Ela assusta a morte.
“Ora,
avô, deixe disso! Todos só querem seu bem! Dar uma olhada mal não vai fazer!
Não é só tia Marília que se preocupa.”
O
velho Geraldo se recostou nos travesseiros de lençóis alvos, retirou os óculos e
cruzou as mãos. Não havia graça em seus olhos e aquele pequeno momento de
compatibilidade de repente pareceu tão efêmero quanto meus sonhos de crianças.
“Dê
lembranças a sua mãe. Fale que logo não vou estar mais aqui então ela poderá
vir pra casa. Quando sair, por favor, feche a porta Eduardo, o barulho me dói a
cabeça.”
Ainda
fiquei um minuto sentado na cama antes de me levantar num pulo, como se de
repente lembrasse que meu ato era profano. O ressentimento dava lugar à euforia
e o recado indiferente para minha mãe pesava em minha cabeça.
“É
João Carlos, avô, e todos nós só queremos seu bem.”
Ele
já havia virado para o outro lado.
“Que
seja, você é só mais um deles.”
Então
dei as costas e saí, dessa vez mais menino do que homem, como nas memórias de
minha infância.
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