quarta-feira, junho 11

Eu quebrei meu coração no dia 25 de outubro de 2002. Quando me lembro sempre é como se tivesse sido apenas dois minutos atrás.

Eu sentada num banco tosco de madeira no fundo de casa retorcendo a musculatura dua e os nervos grossos enquanto o sangue escuro escorria invisível por minhas mãos de menina.

Um coração desfigurado não tem conserto, por força somente biológica ele continua a fazer o que lhe convém, bate e bate muito forte dentro de mim. Desde que o quebrei ele nunca mais bateu direito...

Existia uma pequena noção do que era sofrimento antes dessa minha mutilação, a mesma noção que tem um peixe de voar. Nada se compara a dor fria e metálica que é a dor do amor.

Amar dói, e mesmo um coração quebrado ainda sabe amar. Ama torto, desacreditado, doente, mas ama. E sabe doer.

Toda pessoa, todo livro, toda música. Tudo que eu vi e passei nos últimos doze anos me machucou. Sempre fui fechada e me tornei mais ainda, mesmo que aberta ao riso e aos novos amigos. Descobri que um coração partido amolece a alma e a minha se conturbou e se tornou água turva acompanhada de uma agulha arranhando um disco que não toca nada.

Fico surpresa quando aparece alguma coisa que eu gosto e quando eu gosto gosto tanto...

Sorvete.

Madrugada.

Abraço.

Bacon.

Minhas mirradas alegrias que me fazem sobreviver...

Minha mãe.

Minha irmã.

Minha vó.

Sou tão agradecida por todas as pessoas que me aceitam de coração quebrado.

Barulho.

Eu tenho necessidade do barulho mais silencioso que são as palavras. Meu alimento, minha continuação.

Eu nunca vou dar silêncio. quando eu morrer me tapem a boca pra talvez, em outra vida, ter essa virtude.

Silêncio nesta vida, Deus, é covardia - grito dos meus pulmões silenciosos. Covardia.

terça-feira, maio 27

Henrique - segunda passagem.

A mulher que me encarava parecia ser mais nova que eu. Feições delicadas e simples marcadas em uma pele morena que parecia brilhar mais do que seria natural. Os olhos não brilhavam. Eram de um castanho escuro denso que nada deixavam transparecer, mesmo que mantivesse um sorriso na boca desde que os pousara em mim. O arrepio em minhas costas dizia que os lábios rosados e convidativos guardavam presas, e ela não teria dúvida de usá-las contra mim.

Convidou-me a segui-la pela rua de pedras quase não iluminada a não ser por pontos de luz saídos de alguma janela acima de nossas cabeças. A vida das pessoas ao nosso redor continuava normalmente, quanto a minha, não saberia por quanto tempo  duraria dentro do corpo. Meus tropeções nas  pedras não lhe causavam nenhuma reação, continuava o caminho escuro como se flutuasse centímetros acima do chão, e por mais que soubesse que aquela mulher calçava botas pesadas, tentava com esforço ouvir o atrito delas, tentando fugir da ilusão qualquer em que ela quisesse me confinar.

Deu uma virada brusca para esquerda onde eu nunca teria visto caminho, entrando por uma passagem quase fechada cheirando a umidade e barro, podia sentir as paredes roçando em meus braços enquanto lutava contra o medo que me subia pela garganta. Olhei pra cima e só vi mais escuridão, o céu não tinha estrelas ou eu já não pertencia a qualquer lugar coberto por elas.

Enquanto as pedras pareciam se estreitar mais e o ar entrava com dificuldade por minhas narinas, consegui vislumbrar pequenos pontos de luz a frente que pareciam sair do nada. Finas flechas de dourado claro suspendiam a poeira no ar como se fosse dia enquanto a claridade aumentava vindo de todos os  lados, frestas na parede, no chão, até mesmo  de cima. Minha guia parou, uma silhueta pequena contra a luz, completamente negra.
- Acredito que a partir daqui o senhor conseguirá o que quer sozinho. Minha tarefa foi cumprida.
A voz dela era melódica e sussurrante, parecia falar mais para si do que para mim e talvez o estivesse fazendo se não fosse o “senhor”.

- Pensei que as formalidades eram deixadas de lados quando se dizia os votos. Já não sou nenhum senhor.

- Devo lembra-lo de que ainda não fez voto algum. E avisá-lo de nunca se esquecer do  que é.

Ela aproximou-se de mim, suas mãos pequenas e pálidas envolvendo as minhas em um aperto morno. Parecia ainda menor do que da primeira vez que a tinha visto. Talvez não passasse de uma criança, talvez não fosse ser algum...

- Creio que o senhor se pergunta por que aqui, não?

- Em me pergunto muitas coisas no momento. Mas sim, achei que seria escoltado e levado pela entrada principal da academia.

- Academia? – ela zombava sem tirar os olhos dos meus, fazendo com que eu não conseguisse parar de olhá-la. – Não sabe nada sobre o lugar para onde vai, senhor?

Não me deu chance de responder e quando soltou minhas mãos um frio intenso pareceu entrar por dentro das minhas vestes, gelando os ossos.

- Sua primeira tarefa:  ouvir.  É de fundamental importância que consiga escutar tudo que acontece ao seu redor. Um suspiro, uma sombra, o silêncio. Você tem que ouvir, senhor.

Chegamos diante uma porta de madeira simples que parecia existir por uma eternidade antes de mim  e que ainda existiria por uma eternidade depois. A luz lutava pra sair por entre suas frestas negras, em uma guerra ininterrupta contra madeira e ferro.

-Entre.

Parei vacilante onde estava enquanto ela se espremia contra a parede para me dar passagem.

-Entre.

Tentei olhá-la nos olhos mais uma vez, mas a luz não deixava que visse nada além de sombra. Minha primeira tarefa deveria ser coragem, alguém deveria tê-los avisado de que não possuía as qualidades tão atribuídas à minha família. Lembrei-me de meu pai, convalescendo na cama, a  meia luz como gostava de ficar, ainda encontrando forças para me falar antes de minha partida. Era para aquilo que eu tinha nascido afinal, não era, pai? Pra enfrentar uma porta?

Respirar doía enquanto o ar ficava mais frio, avancei em direção a maçaneta simples e com o coração saltando do  peito, girei.

Não havia nada além do mais puro escuro enquanto sentia a porta se fechando lentamente  atrás de mim. O negrume era tão denso que eu poderia tocá-lo, apesar de não conseguir ver meus braços. Minhas mãos tateavam meu próprio corpo como se para ter certeza de que eu continuava existindo, consegui  sentir minha boca, o nariz, os olhos que de nada serviam.

“Escute” surgiu a voz da moça, de quem nunca soube o nome, na minha cabeça. “Escute, Henrique”.  Não havia o que escutar, o silêncio era pesado e mortal, sufocava  mais que o frio que sentira minutos antes. O ar entrava com dificuldade por minha garganta ansiando uma crise de pânico que não tinha há tempos. Meus joelhos encontram bruscamente um chão de pedra bruta enquanto a escuridão parecia se avolumar para cima de mim, esmagando-me contra meu próprio corpo. Foi então que eu ouvi um grito engasgado de medo vindo das profundezas.  Um grito que tinha saído de mim.



sábado, maio 24

Quando dois invisíveis se cruzam

O momento em que eu quero mais ser invisível é quando alguém, por algum motivo não aparente, presta atenção em mim. Sabe quando alguém aleatoriamente esquece os olhos em cima de você, ou te escolhe dentre várias possibilidades pra perguntar as horas? Depois do choque de ter sido vista eu balanço os pulsos no ar mostrando que não ando com relógio até lembrar que carrego as horas no bolso. Maldito seja o celular. 

Há ainda o tipo pior que a pessoa simplesmente desconhecida: aquela que se conhece pouco. Geralmente o remotamente conhecido se apresenta com sorrisos nas horas em que o observador estrategicamente invisível, no caso eu, encontra-se em seus piores momentos de raiva, angústia, tristeza ou simplesmente apatia e, como bom observador, você se pega de repente observando que ele está te observando. Hora em que todos os invisíveis queriam um buraco pra se enfiar dentro justamente por serem visíveis.

Digamos, por exemplo, que você tenta se enfiar o máximo possível na parede da porta da festa enquanto espera aquela pessoa que gosta sem tirar o olho do celular, sem descruzar braços e com um cigarro sendo tragado atrás do outro pra não conversar. Você é imperceptível. Você é imperceptível até o momento, aquele doloroso momento do erguer os olhos e eles darem nos olhos do cara na outra esquina, o pseudo conhecido com quem trocou duas ou três palavras no estágio que fez no ano anterior, que também tentava ser invisível, de braços cruzados, cigarro na boca e blusa cinza se confundindo com a parede também cinza e pálida da outra rua. 

No momento em que ele olha pra você e abre um sorriso há duas possibilidades, não consigo pensar numa terceira porque precisaria ser menos ansiosa pra tanto. As possibilidades são fingir que continua invisível, olhar pra tudo menos para o descobridor ou se tornar  uma descoberta. 

Tornei-me descoberta. Quando se aprende a observar e vive-se disso como eu, o brilho nos olhos, o franzir dos lábios, o jeito como joga os braços quando anda, o jeito que passa a mão no cotovelo quando tá parado, tudo isso instintivamente aguça  a curiosidade e, meu bem, ser curiosa é maior do que ser anônima.

- E aí, quanto tempo. 

Sorriso bonito.

- Pois é, como tá?

Tímido, quase transparente. Dois furos na orelha e anel de coco no dedo anelar esquerdo.

- Bem... (pausa) Então, o que tá rolando aí?

- Rock.

- Mas como é o esquema?

A blusa cinza na verdade é um moletom cinza com as mangas puxadas até os cotovelos. Cadê o seu moletom cinza, porra?

- Paga 15 reais, lá dentro tem bebida e tal, festa normal. Rock anos 80.

- Anos 80?

- É, é temático.

Pessoas invisíveis geralmente são inarticuladas. Eu sou inarticulada. Última tragada do cigarro, ele vai pensar o que se eu já acender outro?

- Legal... (pausa. Inarticulados, lembra?) Eu to com uns amigos ali no bar, quando acabar a gente vem pra cá.

- Vem mesmo, é legal.

Apesar do olhar amigável os meus preferem olhar os carros na rua.

- A gente vem.

- Beleza...

- Até mais então.

- Até.

Meu sorriso é um enrugar de lábios quando imperceptível.

- Bom te ver, moça.

Meu riso sai pelo nariz por causa da boca cerrada. "Bom te ver" fala minha consciência. Nada sai dos lábios. 

Ele atravessa a rua voltando a ser invisível, eu volto pro muro sempre invisível. Celular. Meia noite e meia. Subo a rua em busca de um táxi.

Cadê você, porra?

quarta-feira, maio 21

Poeminha pro santo.

Amarrei no pulso fita do Senhor do Bonfim
Pra te desejar três vezes pra mim.
Em qual delas você vem?

Como um soco no estômago.

Hoje quando saía da padaria carregando o saco de oito pães de cada dia me permiti olhar além do que meus olhos estão acostumados a ver. Eles pararam, e não poderia ser diferente, em uma senhora muita velha ou talvez tenha sido apenas o tempo a vida cruel que lhe deixaram aquelas marcas, muito magra e muito negra, deitada contra o muro sujo do prédio logo ao lado. Contra seu corpo havia um cobertor de lã de aparência pesada e áspera que ela agarrava como fosse um escudo contra o frio e o mundo. Meus olhos, mal acostumados a olhar a miséria que me rodeia todos os dias, primeiro focaram no vermelho daquele escudo. Era vivo como sangue que sai de um corte novo. A lã viva contra o corpo magro rodeado por sacolinhas de plásticos cortou meu coração em pedacinhos e eu não consegui desgrudar meus olhos dela. Eram olhos mornos, escuros e desacreditados. Ela se permitiu me olhar também, mas o que pensou da menina bem agasalhada arrastando os tênis surrados no chão e levando uma sacola de pães eu nunca saberei. Eram olhos desconfiados que não permitiam a qualquer pessoa saber o que se passava por trás, evidente estava apenas a miséria. Ofereci um pão com a voz esganiçada pela vergonha de reclamar de tudo enquanto ela deveria passar todos os dias por ali, mas invisível. Ela aceitou cordialmente com a cabeça enquanto eu retirava dois e lhe passava. “Pra mais tarde” eu disse oferecendo dessa vez um sorriso. “Pra mais tarde não moça, a gente não sabe quando tem mais tarde. ” Desta vez quem me deu um sorriso foi ela, sorriso despedaçado e frio mas ainda assim um sorriso. Eu não soube mais o que dizer então me levantei, acenei um até logo e continuei a andar. Ela ainda gritou um fique com Deus que eu ignorei enquanto pedia a Deus que ficasse com ela.

sexta-feira, maio 9

Tempestade em copo d'água fria.

- Há um tornado vindo aí.

Havia riso na voz de Joe, o pavor estava concentrado todo dentro dos olhos amarelados pela doença. Olhava para o céu como se o dito tornado fosse se formar em cima da sua cabeça.

Mary não conseguia mais olhar o céu. Da última vez que olhara estava roxo e lívido de fúria. As grandes e gordas nuvens cor de chumbo agitavam-se numa dança mortal que parecia não querer deixar sobreviventes.  Fazia cinco minutos que ela havia tapado os olhos azuis com as mãos sujas de terra enquanto o vento assobiava em seus ouvidos, uivando a dor que a terra sentiria.

- Hey, pequena, levanta! Abre esses olhinhos abre, a gente precisa sair daqui. Abre.

As mãos de Joe seguravam as suas próprias, mãos ásperas e grandes que primeiro foram suaves e depois mostraram sua força. Ele a machucava enquanto os dois lutavam na escuridão dos olhos dela, fechados, cerrados, medrosos. Ele havia conseguido lhe tirar as mãos do rosto, mas não a faria enxergar.

- Levanta, menina, levanta. E olha pra mim, olha pra mim, Mary! Não olha o céu, olha pra mim.

Ele a sacudia enquanto falava, as mãos se apertando em volta dos braços finos e criando marcas que demorariam a sair. Mary sentia as lágrimas quentes começarem a descer pelo rosto, foi quando Joe a abraçou com a mesma força que a balançava e de repente a dor era menor que o sofrimento.

- Olha pra mim, Mary, olha pra mim por favor. A gente precisa sair daqui, entende? Precisa.

Então ela olhou e no lugar do céu perturbador havia apenas o rosto velho e cansado de Joe. Haviam as rugas e barba acinzentada, a cicatriz que cortava a sobrancelha esquerda e a boca fina. E havia os olhos amarelos pela doença tão cheios de lágrimas quanto os seus pequeninos azuis.

Levantaram-se os dois do lamaçal que se transformava o jardim dos fundos do casebre velho. Levantaram e correram contra o vento, contra a morte. E contra o medo.


O sol ardia sobre a pele nua das crianças que corriam soltando gritos de felicidade em direção ao mar.
Era um agosto sufocante em que o ar demorava demais pra chegar aos pulmões e entrava ardendo pelas narinas machucadas pela seca. Mas eles eram só crianças, não se lembravam que quando a noite chegasse iam chorar enquanto as mães gritariam lembrando de terem falado pra não pegar o sol do meio dia enquanto espalhavam loção na pele machucada e vermelha. Não lembravam que a haveria noite, que existia momento depois dali, do mar, do gosto de sal e do sol acima deles.

-A gente vai entrar mas até onde der pé, tá? E se vir uma onda muito grande a gente segura um no outro! – Camila falava rindo enquanto as espumas acariciavam suas pernas magras e os dedos se perdiam dentro da areia.
-Tá! Você já disse, vem logo!

Ele já havia ido na frente, a água batendo na cintura e deixando-o mais alto a cada onda. E continuou indo enquanto ela gritava e ria por trás dele e indo até quando não sentiu mais o chão.

...

- Juntos?
- Juntos.
- No três?
- Aham. – ele riu, ela também e uma covinha se formou na bochecha. Havia algo de nervoso na respiração descompassada dele e nas rugas que se formavam na testa dela.
- E se der problema?
- Deu.
Riram de novo.
- No Três? – ele assentiu com a cabeça e ela riu de novo.
- Vai. Um, dois...
E ele já tinha virado o copo.

...

- Lembra da época em que a gente não precisava de remédio?
-Lembra da época em que você não precisava de antidepressivo?
- Ansiolíticos, reguladores de humor.
-Terapia!
-Micro-fisioterapia.
-Yoga!
-Meditação.
- Viagem astral...
-Lembra da época em que a viagem era outra?
Ele apertou ainda mais a mão na dela, entrelaçando os dedos e dividindo um pouco mais da vida, os dois olhando para o céu contemplando o brilho de estrelas mortas.
- Era melhor, não era?
- Era.
Os olhos se encontraram.
- E era pior também.
As bocas se encontraram.
- Era. Bem pior.
- Eu olho pra você e vejo um pouquinho de mim.
- Eu também.
- Você é um cara bacana, sabia?
Ele riu o riso mais sério que ela já tinha escutado.
-Você não sabe do que tá falando, você não me conhece.
Os olhos se encontraram.
- Eu olho pra você e me sinto em casa. Eu olho pra você e é bom. Olho e não tenho ressaca, não preocupo minha mãe...
Silêncio.
- É bom.
- Me dá um abraço?
- Dou até três.

As almas se encontraram.

quarta-feira, janeiro 1

Conto do avô

O corredor estava cheio de pernas, gritos e do barulho irritante dos tênis de borracha contra os azulejos bem encerados. A algazarra de meus primos mais novos era tão infernal quanto a de qualquer grupo de meninos de sete e nove anos de idade pode ser, e foi interrompida a empurrões quando a mais gorda de minhas tias com cabelo recém tingidos de loiro amarelo em busca de jovialidade subiu as escadas gritando mais alto que a molecada para irem pro quintal porque o avô precisava de sossego.

O avô, que também era o meu, gritava do quarto sem ser ouvido, o esforço da garganta envelhecida não conseguindo alcançar as notas graves de um tempo passado. Observei da porta enquanto ele resmungava com os punhos semirrígidos para as paredes que o ignoravam tão solenemente quanto minha família. Ele logo se cansou, mas não antes de focar os olhos fatigados por um corolário de doenças em mim.

“Quem é que está aí”?

A desconfiança na voz que sibilava ao buscar por força era maior que a curiosidade. Esperei pacientemente que ele pegasse os óculos no criado ao lado da cama e os colocasse de melhor maneira sobre o nariz afilado antes de saciar os pensamentos do velho. Estreitava os olhos pequenos e lambia os lábios finos que ficavam lubrificados de saliva, mas ainda assim pareceu não me reconhecer.

“Sou eu, vô, João Carlos, sua benção.”

Meu nome não pareceu satisfazer sua curiosidade, continuava a me olhar de lado, estreitando a vista e enfiando os dedos por debaixo das lentes grossas para coçar os olhos miúdos.

“João Carlos é? João Carlos... De Mária Eulália ou de Emília?”

“Emília, vovô.”

“Hum.” Os braços finos e manchados fizeram força para erguer o corpo frágil e quando fiz menção de me aproximar para ajuda-lo, recusou com um aceno. “Sabia que era o de Emília, o outro foi morar a muitos anos em São Paulo e Lalinha ainda espera que volte. É uma tola, cheia de esperanças que só as mães têm, depois que a gente coloca filho no mundo não consegue mais controlar a cabeça deles, sabia? Aposto que não sabia. Chegue mais João Carlos, não consigo te ver daí.”

Quando eu era pequeno, o quarto do meu avô era um local sagrado em que ninguém entrava. Ficava da porta com dois primos apostando quem se encorajava a dar passos para dentro daquele grande santuário. Uma vez meu primo Rodrigo chegou até a cama e passou os dedos de leve por sobre a colcha e dali em diante se tornara nosso herói.

Havia imagens de santos por todos os lados e nossas senhoras para todos os gostos e desejos que olhavam sempre com um semblante mais triste do que terno. Uma vez perguntei minha vó Maria porque a mãe de Jesus parecia tão triste e ela disse que a culpa era toda nossa e que devíamos pagar por existir. Ela possuía a mesma expressão triste.

O avô de minhas lembranças era alto e sisudo, de constituição forte apesar de magro, sempre com os cabelos negros e fartos penteados disciplinadamente de lado e barba feita. Era um homem bonito e elegante e eu sempre estufava um pouco o peitoral quando alguma de minhas tias falava que me parecia cada vez mais com ele. Ver o herói de minha infância tão mirrado e fraco na cama imensa daquele quarto velado por Deus embrulhou meu estômago e o medo do destino que me espera ser semelhante àquele correu queimando por minhas veias.

Postei-me de modo que a luz fraca que lutava para entrar por uma fresta da cortina incidisse sobre mim e sorri. Tentei parecer mais alto e mais forte. Tentei naqueles poucos minutos ser mais homem do que fui por toda minha vida.

“Cristo. É como ver um fantasma, não é mesmo, João Carlos?”

A expressão dele enquanto me examinava era carrancuda, mas o sorriso que aparecia no canto da boca murcha talvez denunciasse que estava feliz com o que via, já o meu havia congelado na boca. Para mim aquilo tudo era como ver o futuro.

“Sabe, se sua avó ainda estivesse aqui ficaria louca com você. Ela gostava muito de fantasmas.”

Aproximei-me da cama e pela primeira vez ousei encostar à cama de meus avós. Ainda era bonita. De jacarandá e formas masculinas, combinava com a figura a quem pertencia. Meu avô sempre fora aventureiro e boêmio, soube disso depois de velho, mas em minha imaginação de criança era sempre um general.
“Vovó estava doente, vovô, é diferente de fantasmas.”

Ofereci um sorriso e ele me respondeu com um escarro em um lenço de seda que estava ao seu lado.
“Gostava de fantasmas isso sim. Dizia estar desesperada, e chorava com suas tias e chorava comigo e rezava na igreja como uma Madalena arrependida. Falava “oh, Geraldo, e se um dia não reconhecê-lo mais?” A miserável partiu meu coração. Então um dia a peguei de joelhos, apesar de praguejar contra a artrite, agradecendo a Jesus por esquecer de estar velha. Ela preferia os fantasmas”

Havia amargura em sua voz e também em seus olhos quando os confrontou com os meus. A figura distante e idealizada também sofria e constatar que meu avô também tinha sentimentos chocou-me mais do que a visão de seu definhamento.

Em criança andávamos juntos a cavalo, ele sempre fumando um cigarro, ia a frente abrindo as porteiras sem falar palavra. Eu e as meninas íamos ao meio, acompanhava-o com admiração entre os risinhos incontroláveis das moças e as reclamações pelo longo tempo em cima da sela. Guilherme, meu primo mais velho fechava o cortejo e quando parávamos para descansar ia ter com meu avô, com quem tinha conversas curtas de mais falar do que ouvir. Despertava inveja em todos nós.

“Não acho que seja isso, vô, era a doença falando. Vovó amava viver e ainda mais o senhor.”

Não tinha certeza se alguma vez minha avó amou meu avô de fato. A verdade é que a casa sempre cochichava que ela nunca o perdoou por tê-la deixado sozinha com cinco filhos pequenos para tentar a vida no Pará. Disse que voltaria rico,  que o ouro estava lá. Voltou trinta quilos mais magro e só com a roupa do corpo em farrapos, deu-lhe surra quando ela levantou a voz para ele e depois dormiu por dois dias. Nunca mais falaram disso.

“Tia Marília pediu que examinasse o senhor. A tosse está deixando todo mundo preocupado.”

O riso de meu avô parecia mais um chiado e o corpo todo se contorcia a cada tentativa de gargalhada.
“A tosse é? A tosse é tão companheira quanto qualquer um dessa casa, João Carlos. Falaram o mesmo do intestino e da bexiga e eu não morri. Toda vez que fica mais forte, Marília sobe as escadas correndo e entra pela porta arfando como uma porca e fazendo barulho suficiente pra ressuscitar um morto a três dias. E sua avó reclamava sempre do ganho de peso dela. Eu acho que ter uma filha gorda tem suas vantagens. Ela assusta a morte.

“Ora, avô, deixe disso! Todos só querem seu bem! Dar uma olhada mal não vai fazer! Não é só tia Marília que se preocupa.”

O velho Geraldo se recostou nos travesseiros de lençóis alvos, retirou os óculos e cruzou as mãos. Não havia graça em seus olhos e aquele pequeno momento de compatibilidade de repente pareceu tão efêmero quanto meus sonhos de crianças.

“Dê lembranças a sua mãe. Fale que logo não vou estar mais aqui então ela poderá vir pra casa. Quando sair, por favor, feche a porta Eduardo, o barulho me dói a cabeça.”

Ainda fiquei um minuto sentado na cama antes de me levantar num pulo, como se de repente lembrasse que meu ato era profano. O ressentimento dava lugar à euforia e o recado indiferente para minha mãe pesava em minha cabeça.

“É João Carlos, avô, e todos nós só queremos seu bem.”

Ele já havia virado para o outro lado.

“Que seja, você é só mais um deles.”

Então dei as costas e saí, dessa vez mais menino do que homem, como nas memórias de minha infância.